terça-feira, 31 de outubro de 2023

Minhas pantufas fofinhas e meus dedinhos confortáveis

Agradável

Não existe incômodo nas pantufas

Eu? 

Desconfortável

Não aceito pisar em pantufas

Sou linda sorrindo e por aí vou seguindo sem ninguém ver. Sigo o fluxo da vida sem destino ou interesse. Passo desapercebida. Olhos fundos. Coração dilacerado. Corpo cansado. Pulsos cortados.

domingo, 30 de julho de 2023

Um domingo qualquer

A sandália lilás de tirinhas, um pouco gasta, mas ainda belíssima. Calçou e saiu. Sem rumo, querendo sentir alguma emoção nova. Emoção velha serviria também. Estava adormecida, entorpecida. Blasé, talvez.

Uma tarde morna, sem obrigações ou distrações. Absolutamente nada para fazer. Nem limpar a casa, nem tirar o lixo, nem roupas para pôr de molho. Nada. Na-da. O ócio incômodo dos domingos letárgicos que têm as segundas-feiras apressadas à espreita.

Rímel, batom, vestidinho florido e cabelo preso num belo coque. Sim, figurino displicente não causa confusão, pensou. A sandália lilás? Pezinho à mostra? Não, não vão reparar, justificou, estendendo as pernas e olhando as unhas muito bem pintadas de vermelho com orgulho.

Segurou um risinho maroto e pediu um aperitivo. A música antiga e a decoração com discos de vinil dava um ar kitsch ao bar. Meia-dúzia de clientes solitários em suas mesas confirmavam que aquele, definitivamente, não era o lugar da moda no momento. Talvez tivesse sido em um passado bem distante.

Divertia-se com o segundo ou terceiro drink quando ele sentou à mesa. Será que pediu permissão? Não ouviu. 

- Sim, sim, sozinha. Mas já estou de saída.
- Posso te pagar mais um? Só mais um e vamos embora, que tal?

Disse que não. Disse talvez. E, por fim, aceitou. 

- Amanhã trabalho bem cedo!
- Todos nós! Respondeu com um tom galanteador.

Cinco ou seis drinks? Não sabia ao certo. Não importa, pensou, ao ver a sandália lilás cruzando a soleira da porta, deitado na poça do seu próprio sangue que aumentava gradativamente, na cadência da sua respiração lenta, e manchava o chão de tacos tão bem encerado.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Daí, cheguei e disse: não é pra se martirizar também, né? Quem aguenta uma figura que só sofre? Tudo bem, pode ter sido uma insensibilidade da minha parte, mas pô, os tais 15 minutos permitidos - em termos de lamúria - podem ser bem uns dois ou três meses, mas anos? Não baby, ninguém tá com essa disposição toda não.

Levanta, sacode a poeira e - quando avistar algo de bom - cai em cima. Dor de cotovelo é fofinha nos livros, quando dá poesia. Na música, quando sai um hit do verão. No meu ouvido? Desculpa, mas é um tremendo saco.

Toooda prosa e senhora de mim, falei. Quase não parei. Verborrágica! Até senti orgulho. Só não vi o tombo que vinha pela frente.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Carta para um Lindo

É assim que as coisas acontecem. E é difícil suportar. Tão trash. Ver o vazio do alheio. As pessoas-formiga que nos rodeiam e não são tocadas quando se deparam com a sensibilidade pura. As pessoas, em sua maioria, resumem-se a máscaras ou cascas.

Aprender a viver o momento. Isso é importante. Tem gente na nossa vida que é só um café, não queira transformá-los em jantar. São pequenos demais. Não nos alimentam. Você tem de aprender a ver a história da forma que ela é e não da maneira que gostaria que fosse. Então se adapta. E não sofre tanto.

(eu estou aprendendo)

Quando passei a fazer isso de forma automática achei que não sabia mais sentir. Não é isso. É viver o momento e saber onde pisa. Pensei nisso hoje e lembrei de você.

Você é bonito, interessante, inteligente. Diferente desse povo que está disponível por aí. Você é sensível e não se envergonha disso. Assume e se permite sentir. 

A gente não sabe lidar com rejeição, despedidas e etc. Ninguém foi criado para isso. Adeus é cruel. Escrevi algo sobre isso um dia. O adeus do amor pode ser pior do que o da morte. O da morte é inevitável, num dado momento a gente consegue entender. O do amor não.

A pessoa parte, continua vivendo sem a gente e parece que é exatamente isso que a gente não entende. Como amar tanto um alguém que vive a própria vida sem se incomodar com a nossa dor, sem notar nossa existência?

Acho importante sofrer. Digno, sabe? Acho que a gente tem de sofrer até purgar. E, ultimamente, não tenho sofrido (muito). Ou não sofro o tanto que costumava sofrer. Daí, comecei a sofrer por me achar anestesiada.

Não é difícil viver, mas a gente quer controlar tudo. Quer que as coisas aconteçam do jeito que a gente imagina. E, de repente, a gente se frustra sozinho.

E o universo fica lá, parado, esperando a gente voltar pro nosso rumo pra colocar as coisas boas na nossa vida de novo.

Acho que é por aí.
Se cuida.
Te adoro.
Queria pegar na tua mão e te dizer bem baixinho, no ouvido, que tá tudo bem, que não precisa ter medo, foi só um sonho ruim. Te encorajar a levantar a cabeça e enfrentar o mundo de peito aberto. Explicar que existe um abismo entre o medo e a realidade.

Queria te botar no colo e sussurrar: vai, vai lá, você não vai cair nem se decepcionar. Te mostrar que o mundo, na verdade, é feito de possibilidades. Que toda escolha pode ser boa. Que vale a pena acreditar que o bem existe.

Queria te acarinhar e provar que o amor supera qualquer provação. E que, por mais que você acredite que o mal agora reina, ele não tem efeitos sobre quem vibra positivamente.

Queria sustentar a nossa egrégora, te envolver em compaixão. Te fazer brilhar e ver seu brilho se alimentar dele mesmo, expandindo-se até o infinito.

- Voa e alcança o céu. Quando alcançar, voa mais e mais além.

Contida. Reprimida. Impedida de qualquer manifestação. Ação restrita. Observo. Aguardo.

Um dia, talvez, suplicarei aos santos: Permitam-me! Os santos, em sua sabedoria e benevolência, responderão: Não lhe pertence...

E tudo continuará como sempre foi.
Exatamente como tudo tem de ser.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Tem esse quadro na parede que me causa calafrios. O corpo de um lado e a cabeça do outro. Uma bruma os liga. Algo tênue e ao mesmo tempo lúgubre.

Nos dias em que assisto filmes de suspense ou terror, cubro-o com um pano. Ou deixo a luz da sala acesa. Ou os dois.

Não sei a causa do pânico. Medo da própria pintura ou de me ver na situação da pintura.

O quadro é muito, muito antigo. Não se vê a assinatura. Desconhecido. Talvez isso acentue a inquietação que ele me causa.

Não há sangue. Não há dilaceração do corpo. O corpo, na verdade, é uma estátua. Ainda assim, é macabro.

O fundo é escuro. Esverdeado, talvez. Estranho, com certeza. A moldura está rachada e faz uma boa composição, dando um ar mais sinistro.

Os olhos me perseguem onde quer que eu esteja. Se vou do quarto pra cozinha, da cozinha pra sala, eles estão lá. Mesmo quando me sento à mesa, para bebericar, observar as frivolidades cotidianas das redes sociais ou escrever algo inútil que nunca será lido, os olhos estão lá. Pousam em mim sem nunca distraírem-se.

Sempre tive pavor dessa imagem. Tantos quadros bonitos guardados e esse na parede. Por quê?

Não. Não há quadro nenhum na parede.
Apenas a minha imaginação me pregando peças.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Recessão

Isso é o que ocorre com os escritores. Não é crise criativa.

Tanto a dizer e o texto não vem. Fica ali, entalado nos dedos. Não sai nem a pauladas.

Enquanto isso, os chinelinhos estão secando nas janelas, os boletos estão todos - ou quase todos - pagos, os bichos têm comida, as roupas estão limpas e as plantas têm água.

Mas o texto, ah, esse não vem. Não se resolve e nem resolve ninguém.

Parece até que espreita. Dá as caras quando não há lápis ou papel. Quando, nesses tempos modernos, a bateria acaba. Some magicamente perante a qualquer possibilidade de registro.

E nesse jogo de gato e rato, diz-se que toda metalinguagem será perdoada diante de uma recessão.

Amor infinito

Escrevo aqui uma mensagem que pode ser lida depois - o que é um contrassenso se analisarmos a função de um aplicativo de mensagens instantâneas - e respondida, ou não.

O fato é que estamos afastados há muito e conversas corriqueiras ou respostas imediatas já não fazem mais sentido.

Você está naquele patamar de semideus-poético-e-ídolo que me faz feliz só de saber que um dia soube de mim. Da minha existência.

Alegra-me também ter conhecimento de que nota a minha inexistência no seu tempo presente. 

Esses rodeios e floreios são pra te dizer que sim, te amo. Sim, sinto tua falta. Sim, compreendo tua ausência. E, sim, continuo aqui. Por você. Pra você.

∞ Enquanto o amor existir ∞

Memória

s.f. aquilo que se anota para não esquecer

Assim que minhas memórias começaram a sumir desenvolvi uma infinidade de manias. Fazer anotações. Escrever diários. Guardar papéis. Mandar mensagens para mim mesmo. Até o modo de me relacionar mudou.

- Então, já te contei aquilo que me aconteceu quando estava…

A cada Não, o que houve?, um alívio. Sim, algumas vezes, um improviso. Tornou-se sofrível manter amizades antigas. Ao mesmo tempo, fiquei muito popular em eventos sociais.

Primeiros contatos, primeiras conversas. Conto tudo de uma vez e não volto a falar com a pessoa jamais. Tornei-me interessante. Essa fase foi ótima. Até começar a esquecer a fisionomia das pessoas.

De repente, um insight. Quem se importa? Quem, verdadeiramente, ouve? Vou mais além: quem se interessa?

Nem eu mesmo, que agora já não me lembro mais o que queria dizer quando comecei a escrever isso...

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A garota do caixa

Levantei como se tivesse sido nocauteada. Preciso dormir mais cedo, repeti pra mim mesma como uma nota mental. Privação de sono sempre foi a causa das minhas piores ressacas. Arrastei-me pela casa, em câmera lenta, dando uma topada aqui e ali. Meu Deus! Esses móveis se movimentam sozinhos à noite?

Cheguei atrasada e suada no trabalho, depois de caminhar muito mais do que deveria. Ao menos três paradas. Mas o cochilo valeu a pena. Até sonhei.

 - Algo mais, senhor? Posso fechar? Débito ou crédito? Tenha um bom dia!

Tão mecânico que se alguém me entregar dinheiro é capaz de eu tentar enfiá-lo na maquininha. No final do ano, acrescento: Boas festas! Com um sorriso forçado, é claro, para parecer simpática.

O alarme toca. Lanche.

Todos os dias, o mesmo lanche. Todos os dias, as mesmas pessoas. Todos os dias, a mesma conversa.

 - Invente, crie, inove, surpreenda! Mas siga as regras. Não saia da rotina!

Será que sou só eu que vejo incoerência nisso? #diferentona?

Nada muda. Nem os clientes. Nem as compras.

Saradão compra verdura, shakes e ovos. Aliás, mais ovos do que uma pequena granja produziria por mês. Mães: fraldas, leite em pó, papinhas e lencinhos umedecidos. Adoro a palavra: úmido. Tudo que deriva dela também: umedecido, umectante, umidificar. Pais: fraldas e cerveja. Solteiros: cerveja, vinho, comidas prontas. No final do ano: panetone e passas. Aliás, taí algo que divide a população da Galáxia: passas!

Perto do fim do turno, no meio dos meus devaneios sobre o superprêmio da loteria, me aparece, juro, um gênio querendo satisfazer meus três maiores desejos. Mentira, óbvio! Mas algo quase tão inusitado quanto isso.

Um senhor de meia-idade, acho, vestido de Papai Noel. O carrinho abarrotado de bebida. Sim, já vi filmes sobre como a época no Natal pode ser devastadora, seriados médicos com Papais Noéis bêbados, reportagens sobre o índice de suicídio neste período, mas - pra mim - foi surreal, e daí?

 - Boa tarde! Mais alguma coisa?
 - O seu telefone!
 - Oi?
 - Sim, a sua expressão patética me diz que você vai passar o Natal sozinha.
 - Desculpe-me senhor, mas eu não…
 - Não dá seu telefone pra cliente, né? Pode parar com esse seu texto ensaiado que se eu fosse um cara bonitão, sarado, você tinha até pedido o meu também. Não enrola. Qual é o número?

Chocada, esbocei um sorriso pro gerente não perceber a discussão e dei. Dei meu número! O número correto, inclusive.

 - Te ligo no dia 24, ok? Já tô avisando pra não aumentar sua ansiedade...
 - …
 - Boa tarde! Boas Festas vou te desejar quando nos encontrarmos novamente.
 - …

E foi embora. E não ligou. Mas me fez pensar na vida. Nos preconceitos. Nas promessas não cumpridas. Nas escolhas. Nos caminhos que a gente não vive, esperando a vida acontecer.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Peça em construção

Um texto para ser lido à noite, na solidão,
acompanhado de um cálice de vinho,
mas nunca encenado!


1 é pragmática, vê a vida em preto e branco. Gosta de pessoas sinceras, coisas claras. Não consegue enxergar o caminho do meio. Classifica tudo na vida em certo e errado. Seu lema é: aqui se faz, aqui se paga.


2 é passional, guarda rancores e amores. Tenta ser ponderada e diz que não gosta quando acontece, mas estoura até com os amigos mais íntimos se sente seu espaço ameaçado. Não admite que erra e tem uma enorme dificuldade em pedir desculpas. Sua frase é: dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair.


3 é reprimida, não confessa seus sentimentos nem sob tortura. Parece frágil, mas aguenta pressão. Sente que ainda tenta se situar na vida. Demonstra insegurança. Seria de se pensar que congela frente às intempéries. Mas tem um quê de dissimulada. Nenhuma frase lhe define.


1, 2 e 3 podem ser uma só. Podem ser eu, que sou mulher. Podem ser Maria, Cristina, Ana, Josefa. Podem ser um homem, uma Trans... Podem ser uma, duas ou três pessoas quaisquer. 4 surge do nada, depois. Não tem cara, nem corpo. Essa história pode ter acontecido ou não. Pode estar acontecendo neste momento, na sua casa, do outro lado da rua ou em algum canto desconhecido desse País, de algum país...


2
Fui criada em fazenda. Tinha de tudo por lá. Vaca, boi, galinha, cavalo, bode, gato, cachorro… Tinha pai, mãe, irmãos… Na verdade, tinha muita gente… Gente demais… Tinha muito sonho também. Sonho de ter outra vida. Não que aquela fosse ruim. Era pouco. Só isso, Pouco. Não queria ficar por lá…. Casar? Ok, casar… mas sem me aventurar pelo mundo antes? Acho que não… Não… Nem pensar… Minha mãe era bem feliz com a vida que levava, só que eu queria mais…. Sei lá, experimentar outras coisas, viver na cidade, ser independente


3
Ao mesmo tempo, não conseguia confessar essa minha vontade pra ninguém. Meus irmãos foram saindo de casa pra estudar, fazer faculdade… Sempre voltavam na época das férias cheio de novidades. E eu ali presa, prestes a virar professora, fingindo ter paciência com crianças, mentindo que amava ensinar… De repente, por providência divina, a coisa ruiu.. A escola simplesmente faliu poucos meses antes de eu concluir o Normal.


2
Acho que era a única do País que ainda oferecia esse curso.


1
Papai sugeriu que eu terminasse a escola e  fizesse o curso de enfermagem.


- É mais adequado para moças.
- Tudo bem, papai, mas a faculdade fica a 150 km daqui. Eu vou ter de me mudar pra lá, né?
- Quando for a hora a gente pensa nisso...


2
Boi, cavalo, galinha… Você acha que ele lembrou desse assunto? Eu fiz a minha parte. Não mencionei a mudança até faltar um mês pra começarem as aulas. O que não tem remédio….


4
Risonha, encabulada e dócil. Foi essa a primeira impressão que tive. Não conseguia desgrudar os olhos dela. Bebia pouco e já corava as bochechas, uma verdadeira graça. Levei um susto quando me confessou estar ali sozinha.


- Você vem sempre nessas festas de república?
- Primeira vez…
- Qual é o seu curso?
- Enfermagem. E o seu?
- Engenharia.


Eu não sou um cara insistente. Na verdade, eu praticamente inventei a insistência! Posto isso, nem preciso entrar nos detalhes do quanto cerquei a moça até que ela aceitasse um convite meu, certo? Mas não é coisa de garanhão não! Juro! Eu realmente gostei dela…


- Tá bom, tá bom… Cinema eu topo. Mas só daqui a duas semanas. Estou em época de provas…


Daí pra engrenar, foi um pulo...Cinema, pipoca, restaurante da moda, programas culturais, mensagens ao acordar, ligações intermináveis madrugada adentro. Horas e horas e horas de “desliga você primeiro. Não, desliga você!” Casa dos pais no domingo, viagens, Natal em família “uma vez com a minha, outra com a sua”, restaurante barato, sexo morno, DR madrugada adentro. Horas e horas e horas de ” Foi você! Não, foi você!” E mesmo assim é lindo… porque é amor. E amor foi o que eu senti e expressei diante de todos que eu conhecia naquele 12 de setembro, às 21 horas, olhando nos olhos dela… Na falta de palavras minhas, peguei algumas emprestadas...
"Nunca pensei que um dia estaria aqui, em frente a um altar prestes a me casar e muito menos, com uma pessoa tão maravilhosa. Todos me disseram que logo, logo, esse encanto todo acabaria e que não seria eterno. Eu sei que não! Prometo que farei de tudo para seja eterno. Porque eu te amo! É contigo que quero viver até o ultimo pulsar de meu coração e quando isto acontecer não importa para onde eu vá, pois eu irei feliz por ter vivido ao seu lado e compartilhado cada momento lindo da minha vida contigo."

1
Legítima defesa!


2
Homicídio?


3
Não sei o que aconteceu...

Naquela noite, tinha bebido um pouco, acho. Não lembro bem. Saímos pra nos divertir. Cinema, jantar, altos drinks. Fazia tanto tempo... resolvemos esticar um pouco

- Queria tanto dançar...
- Jura? Não prefere um motelzinho?
- A gente começa dançando, depois quem sabe o que pode acontecer?

3
Nem sei porque disse isso. Só queria curtir, ver gente.
Uma vida de concessões... Achei até normal a barganha com meu próprio corpo...


2
Abuso, acho que a mera concordância do outro com esse tipo de situação é abuso!


1
Ou não... Não sei... A gente perde a noção... Perde a medida... a identidade.. Até a dignidade, às vezes


3
Esse termo, essa palavra... é muito forte... Deixa eu repassar os fatos... Pode ser que fique mais claro... Bom, ele tinha sido promovido naquele dia. Me ligou do trabalho e disse pra eu me arrumar.

- Vamos jantar num lugar chique. Vê se capricha, hein?
- Claro!

Achei graça do pedido e fui pro salão fazer as unhas. Lá tem umas roupas seminovas, sabe? Aproveitei a ocasião e comprei um vestido... desses bem curtinhos que estão na moda.


2
Linda eu já nasci. A definição pra mim aquela noite era Espetáculo Sim! Es-pe-tá-cu-lo, ele disse. Desse jeito mesmo, pau-sa-da-men-te!


1
Mal acreditei!


3
Chegamos ao restaurante. Ele fez os pedidos, como sempre. Eu nem gosto muito de carne vermelha, mas ele me explicou que era o melhor prato de lá. Olha, nessa hora, tive uma pontinha de ciúmes... Como ele sabia? Tinha ido lá com quem? É o mais caro, querida, lógico que é o melhor. - Ah tá...


2
Não quis discutir, afinal, era o dia glorioso dele.


1
Mas internamente argumentei comigo mesma: nem sempre o mais caro é o melhor... será que ele veio aqui com outra? Ou me acha burra? Ou pensa que não consigo tomar minhas próprias decisões? Eu saberia muito bem o que pedir: peixe! Embora a carne seja cara, qualquer restaurante que tenha Do mar no nome, é bom em peixe, não é? Frutos do mar... Enfim...


3
Parece que passei muito tempo divagando.

- Tá pensando o quê?
- Nada...
- E esse olhar perdido?
- Pensando em você, em nós, em como a gente é feliz...


2
Em como eu sou falsa! Não, né? É claro que não falei isso. Mas pensando bem, deveria...


1
Eu ia rir sozinha...


3
Tomei vááááárias bebidas coloridas, cada uma mais gostosa que a outra.


1
Fui escolhendo pela lógica dele: sempre as mais caras!


3
Quando me dei conta, já estava enrolando a língua. De pilequinho na rua... Aiii que vergonha!


2
Acho que foi aí que começou a discussão...

- Vamos?
- Quero dançar...
- Já tá tarde...
- Você agora é chefe, pode chegar atrasado pelo menos um dia na vida
- Claro que não! Agora eu sou o exemplo..
- Só um pouquinho?
- Jura? Não prefere um motelzinho?


3
Acho que já contei isso... Enfim, fooooomos dançar...

2
Parecia que a gente era a sensação da boate. Eu, o  -  Es-pe-tá-cu-lo -  e ele... Ele... ele ué... O... ele de sempre.


3
De repente, do nada, estávamos dançando com mais dois caras. Simpáticos... bem simpáticos...


1
Voltamos às rodadas de drinks.. Dessa vez, acompanhados e com mais sede...


3
Lá pras 4h da manhã a estória do motelzinho surgiu de novo.

- Não, meu bem, eu tô cansada... Me leva pra casa?
- Você prometeu!
- Eu disse que talvez..
- E desde quando seu talvez não é sim?


2
Não era um motel...


1
Mas também não era a minha casa...


3
Acho que tinha mais gente... Não sei o que aconteceu...


1
Acho que bebi demais...


2
Porra! O que aconteceu???


3
Dez anos sem tocar nesse assunto. Dez anos sem saber. Dez ótimos anos... Acho que, na verdade, eu nem queria descobrir...


1
Li na internet um negócio de gatilho... Dizem que é assim: você tranca uma situação na sua cabeça e esquece dela. Daí, pode não lembrar... nunca! Mas se algo parecido acontece, traz tudo de volta... e você lembra.


3
Ao mesmo tempo, dizem que a mente engana a gente e que a memória tem a ver com as sensações, sentimentos, não sei explicar direito...


2
Mas num dia ele sugeriu apimentar a relação... Quis saber mais..

- Fantasias? Roupinhas?
- Não sei, acho meio óbvio... sem-graça... De repente, uma terceira pessoa, troca de casais. O que você acha?

Não curti muito, mas tentei imaginar.

- Alguém conhecido?
- Não, melhor que sejam estranhos...

De repente, algo me consumiu. Veio um ódio... Mas um ódio... do nada, sabe?


1
Legítima defesa!


2
Homicídio?


3
Não sei o que aconteceu...

Só de mim

Com certa dificuldade o velho cruzou a esquina. Apoiava-se na bengala de ferro. Presente do seu filho do meio pelos 81 anos recém completados. Nunca dei fraldas de presente e agora recebo uma bengala. 

- É útil, papai, é útil...

Grandes merdas. Depois reclamam quando digo que filho do meio não presta pra nada. 

Atravessou a rua e foi sentar-se na cafeteria. As mãos trêmulas quase o traíram derrubando o café com leite na calça. Foi por pouco. Estava vestindo sua melhor roupa - roupa de ver a Deus - como dizia sua falecida mãe.

Jogou migalhas de pão para os pombos e tornou a andar. Deteve-se por alguns minutos olhando os novos televisores na vitrina da loja de eletrônicos. Tempos modernos, agora as coisas saem de dentro dos televisores e ficam passeando pela sua casa. Se o Jornal Nacional fosse nesse 3D, há um tempo atrás, chamaria o Cid para jantar lá em casa. A mulher ia cair dura. Batata que ia!

Andou até a farmácia, pegou os remédios, continuou até a casa da filha mais velha, pegou a neta. Sextas e sábados ficava com a neta para que a filha pudesse sair e, quem sabe, arrumar um novo marido. A filha havia ficado viúva tão cedo que fazia dó. Dez anos e continuava sozinha. Foi por encorajamento do pai que voltou a se relacionar, mas colocava defeito em todos.

Os homens que conhecia sempre tinham algum defeito grave. Alto demais, baixo demais, gordo, magro, cara de cafajeste, muito bonzinho, estúpido, lindo...

- Lindo???
-  É, lindo... O que um cara lindo como esse vai querer comigo? Ele deve sair com modelos. Sou uma mulher comum, papai, você não entende? Ele é lindo demais e ponto final, não vou jantar com ele.

O pai riu, o mau gênio vinha da parte dele.

Assim passavam-se os dias. Ele tinha uma rotina com tantos afazeres que pensava em pedir uma segunda aposentadoria para os filhos. Não precisariam lhe dar dinheiro, tinha o suficiente, queria apenas sossego. Na época em que trabalhava no escritório tinha tempo, dizia que estava ocupado e fazia o que queria.

Agora não, agora faço o que me mandam. Eles dizem que pedem, mas se recuso, pronto! É cara feia pra um ano. Passo a semana inteira sem tempo para mim, é um tal de pegar a roupa de um na lavanderia, levar não sei quem na aula de espanhol, buscar salgadinhos pra festa que não fui convidado e até ficar em fila para comprar ingresso de show, pode?

Estava ficando ranzinza. Velho e ranzinza. Ralhava com os netos, com os filhos e também com os vizinhos. Ia ao baile semanal só para falar mal dos outros. Poupava apenas os mortos. Esses ganhavam uma espécie de salvo-conduto de sua língua ferina. Não tem mais como se defenderem, só por isso. A única que recebia agrados e palavras doces era a neta. Ela não tem pai, alguém tem que cuidar. Melhor, então, que seja eu.

A menina já ia completar quinze anos, mas ainda era franzina. Simpática, educada, estudiosa e feia. Indubitavelmente feia. Estudava muito para não dar desgosto à mãe. Tinha quatro anos quando o pai morrera, mal se lembrava dele, sabia quem era pelos retratos que tinha em casa. A mãe não falava dele nunca. O avô não gostava muito de seu pai. Ah, mas o avô não gostava de ninguém, né? Só de mim. O avozinho gosta só de mim.

Ela - além de feia - era sem graça, nem sabia conversar. Não tinha amigas de sua idade. Fora criada com adultos e, no mundo deles, raras vezes era convidada a emitir opinião. Quando o fazia era sempre com a insegurança daqueles que são interrompidos em suas ideias, mas afinal, o que ela sabia das coisas?

Sabia ir à escola. Sabia ficar calada. Sabia ir à casa do avô. Sabia sonhar acordada. Isso ela sabia bem. Os dias na casa do avô eram os seus preferidos. Não diziam nada, mas ela podia comer doces, ver televisão até tarde, usar as roupas e jóias da falecida avó. Ela gostava de fingir que era a dona de casa e seu avô compartilhava da sua fantasia. Na brincadeira ela era outra, era bonita, adulta, interessante e mandava em tudo.

Nesses dias o avô sentia-se renovado, disposto, nem sombra do velho ranzinza. Todas as sextas e sábados, à noite, quando a neta finalmente se despia e deitava em sua cama.

A neta, repetindo os gestos da mãe. A neta, que era também sua filha, às sextas e sábados, era apenas uma mulher.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Conceitos e divagações

Muito influenciada pelo filme A Cabana, tenho refletido bastante sobre Deus nesses últimos meses.

Além disso, ando numa vibe de orgânicos, yoga e meditação. Reduzi consideravelmente o álcool, que agora está restrito ao uso recreativo (terapêutico, não mais...). Os cigarros, ainda não. Mas vou bem, obrigada! Faço exercícios regularmente, observo meus atos e procuro não julgar os outros.

Isso tudo parece tornar-se automático depois de um tempo. As escolhas vão ficando melhores, mais saudáveis. É uma vida com mais amor.

E no meio disso tudo: a reflexão sobre Deus. Sim, Ele tem ocupado meus pensamentos. Mas não ocorre de maneira organizada. Ao menos, não tem a organização que eu conheço. Na verdade, é bem caótico...

- Deus está em todos os lugares...
- Hummm... então Deus está aqui em casa.
- Deus é amor e ele te ama.
- Ahn... Eu acho que devo agradecer a Deus por esse amor gratuito.
- Não precisa, pois você é uma centelha divina, você é parte de Deus, você é amor. Deus e você são um só, ele sabe o que você pensa.
- Deus pode estar invadindo minha privacidade, mas não quero pensar nisso agora. Voltemos ao que importa: se eu sou amor e Deus é amor, eu posso pensar que Deus sou eu. Hummm, ok, eu e Deus não somos originais ou os Mutantes foram Deus antes de mim?
- Não existe antes. O tempo e o espaço são meras ilusões. Tudo acontece no presente e o que importa é o agora.
- Ah tá. Então, nesse momento em que eu sou Deus, estou nascendo, crescendo e morrendo, mas ainda estou aqui escrevendo esse texto?
- Pode se dizer que sim...
- Então eu sou Jesus também? Porque, se me lembro bem, ele foi o cara que morreu e continuou vivo...
- Jesus e Deus são um só...
- Tá! Jesus, Deus e eu somos um só?
- Não existe separação. Deus e cada ser é um só.
- Aaaaaahhh.. Deus e Buda, Deus e Guru Ram Das, Deus e meu vizinho que canta alto domingo de manhã, Deus e... todo mundo?
- Sim.
- Um só?
- Exatamente.
- Até o gato?
- TODA a criação.

Nesse momento tenho a ligeira impressão que o Universo perde a paciência comigo, mas é só impressão mesmo. Até porque o Universo é Deus e se ele é infinito, a paciência dele também é.

E volto a pensar no gato. 
E em Deus. 
E no Deus-gato. 

E chego à conclusão que Deus anda muito saidinho. Traquinas, sabe? Só nesse último mês, rasgou minhas cortinas, fez xixi onde não devia, me mordeu quando eu estava fazendo carinho e resolveu me acordar às 4h da manhã lambendo meu nariz.

Pensando assim, descubro que gosto bastante de Deus. Ele está muito mais próximo de mim do que eu imaginava.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Barco Negro

Hoje tive um dia ótimo, cheio de novidades, descobertas e encantadoras alegrias.

Vi o amor fluir em pequenos gestos cotidianos, vi olhinhos brilharem e sorrisos se abrirem.

Contemplei o céu e ouvi a música do ocaso. Andei leve só por acreditar ser e ter o suficiente.

Quis, então, compartilhar minhas aventuras. Mas você não estava ao alcance dos olhos.

Na minha pobre tridimensionalidade, não te vejo. Não te sinto. Mas sei que você está sempre comigo.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Quando amanhã chegar

Amanhã eu acordo cedo e vou na feira.
Amanhã faço exercícios.
Amanhã dou bom dia aos desconhecidos que cruzarem comigo na rua.
Amanhã sou simpática.
Amanhã invento um sorriso falso e minto que gostei do presente que você me deu.
Amanhã finjo que não sei das suas mentiras.
Amanhã cumpro tudo o que te prometi.
Amanhã falo que te amo e te beijo apaixonadamente até você acreditar.
Amanhã trabalho até anoitecer e depois canto e danço até o sol raiar.

Amanhã.

Hoje não.
Hoje tomo vinho e durmo, pois me cansei só de pensar no amanhã.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Enquanto você dormia...

Vesti rosa e me perfumei. Arrumei cabelo, me pintei. Ensaiei versos, enfeitei casa. Calcei saltos, dancei valsa.

O sol se pôs e você não veio. Aquele amor, prestes a desabrochar, secou antes do tempo.

Continuei a rodopiar.

As flores, murchas, deitaram suas pétalas no chão. Não fiz caso.  Novos enfeites. Novas rendas.

A música ainda tocava quando, enfim, você surgiu. Tudo impecável. Exceto o querer. Não sei bem precisar quando este desapareceu.

Talvez... enquanto você dormia!

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Lua em leão

Há quem sofra calado, sorrindo, sem alardear.
Há quem aguente os pesares da vida sem titubear.
Há quem passe duras provações sem queixumes.

Eu não!

Sou daquelas "certas mulheres" escandalosas. Grito, esperneio, choro. Reclamo, resmungo. Peço colo, carinho e cafuné. E se não der, falo mal.

A dor pode passar.
O sofrimento pode acabar.
Mas o drama... o drama há de continuar!

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Aprender a viver

- Estou com muita saudade de você, sabia?
- Não. Você não me contou antes.
- Pois é... estou.
- E aí, como é?
- É assim, você aí.. eu aqui. Esse espaço-tempo em que nosso olhar não se cruza, nosso corpo não se toca... rola uma falta.
- Sei... Um vazio, né?
- Não. Não é vazio. É um espaço todo preenchido de amor, de bem-querer.
- Ué, mas o que falta então?
- Falta o hoje, o agora, a presença.
- Então tem uma ausência...
- Sim.
- Taí, vazio!
- Não. Só ausência física. Mas a minha memória está povoada de você.
- E se nunca mais nos encontrarmos?
- Vai ficar cada vez mais cheio.
- Cheio?
- Sim. Cheio de lembranças, carinho, amor...
- Jura?
- Acho...
- Acha???
- É... ainda tô aprendendo...

Livre

Grilhões soltos
Tempo de voar
Começar do zero

Soltar
Viver
Respirar

Amar sem limites
Respeitar
Querer sem prender

Ser do ar
Ser o ar
Ser

quinta-feira, 4 de maio de 2017

A senhorinha

Simpática, cabelos branquinhos, risonha. Anda feliz de lá pra cá. Trabalha, mas apenas no período da manhã. As tardes, preenche com afazeres prazerosos. Pequenos deleites - é como ela denomina.

Canto, yoga, cinema, teatro e uma tacinha de um bom Bordeaux. Vez ou outra, é claro, porque dançar em cima mesa de bar é coisa dessas adolescentes de quarenta e poucos anos.

Ligada em astrologia, numerologia, homeopatia e todas as ondas que, numa determinada época, foram denominadas New Age.

Mas também faz questão de estar antenada em política, saber os últimos resultados do futebol e acompanhar uma novelinha, apesar de negar essa última.

Veste-se de acordo com seu humor. Pensa antes de pisar no chão ao acordar, pra começar o dia sempre com o pé direito. Repassa tudo o que fez quando repousa a cabeça no travesseiro, enquanto o Dormonid não faz efeito.

Regozija-se ao perceber que não falou mal de ninguém. As pequenas mentiras? Essas, não põe na conta. Ri e adormece feliz.

Setenta e seis anos de pura vitalidade. Atribui essa energia toda às boas companhias. Ao namorado 30 anos mais jovem. Ao marido compreensivo. E ao paquerinha que arrumou no curso de inglês.

Esse último, responsável pelo friozinho na barriga de segundas e quartas. Talvez tenha influenciado também na tatuagem que fez no pé, no novo cabelo cor de cereja e na volta dos saltinhos médios.

Rotina

Sabe aqueles dias em que você tem preguiça até de ter preguiça?

quarta-feira, 3 de maio de 2017

É preciso aceitar o princípio da mutabilidade. Tudo é perecível. Assim como os alimentos envelhecem e perdem suas propriedades, as relações também se transformam. Acolher a mudança nos prepara para receber outros nutrientes afetivos na escala da evolução.

Dúvida cruel

Respeito sua noite escura, seus espaços vazios, suas ausências. Respeito seu mau humor matinal, seu jeito taciturno, seus silêncios quase intermináveis. Respeito seu tempo, suas vontades, seus gostos. Respeito suas manias, seus quereres, suas manhas. Respeito suas amizades, seus familiares, seus desafetos. Respeito sua prioridades, seus pensamentos, sua vida...

Por que, então, você não respeita essa minha vontade de ir embora?

Curtinha

Fado me faz feliz. Acho engraçado porque é um ritmo reconhecidamente triste. Mas comigo rola algo estranho. Enquanto a mulher se esgoela cantando, fico impressionada com a potência vocal, com as notas altas alcançadas e esqueço da letra que fala da vida miserável que ela leva.



A arte do sentir

Estamos cada vez mais desesperados para sentir mais, ou menos, alguma coisa. Diminuir a dor, a carência, o sofrimento. Ampliar a alegria, esticar o amor, reviver felicidades.

Nessa busca, usamos mais e mais subterfúgios. Entorpecemo-nos com álcool, drogas, café, compras, viagens, sexo, TV. No fim, não sentimos mais nada.

Anestesiados da vida. Zumbis modernos sugando a última gota de energia de tudo e de todos. E esses todos são tão zumbis quanto nós. Deficientes no sentir.

Fingimos ser o que não somos para obter de outros o que fingem ter.

Ressequidos, sem afeto, sem propósito, zombamos daqueles que ousam apenas ser. Julgamos os vulneráveis. Afastamo-nos da verdade.

Nossa imensa vergonha da incompletude nos desvia, dia a dia, de nossa essência. Almejamos a perfeição desconsiderando nossa permissão divina de sermos imperfeitos.

Murchos, doentes, miseráveis, arrependemo-nos... tarde demais!

domingo, 22 de janeiro de 2017

Rima pobre

João, que tinha medo de trovão, conheceu Maria, que nunca saía de dia, e logo a convidou para um café. O café, que ficava em Tatuapé, era bem conceituado e Maria, que não tinha no guarda-roupas nada adequado, pediu à prima um modelito emprestado.

A prima, nada besta, pediu para acompanhá-la. João, muito ansioso, marcou para sexta. Sexta foi um dia chuvoso. João, muito medroso, cancelou.

Importante registrar que mandou mensagem, resolveu não ligar. Maria, que já estava na rua, chamou a prima para ir num bar. A prima foi e as duas se arranjaram por lá. No dia seguinte, Maria já estava a namorar. João ficou sem Maria e sem a prima que nunca chegou a conhecer.

As duas, hoje, moram na mesma rua, com seus maridos, cachorros e filhos, e se divertem a valer.

João?
João nunca mais foi visto não.
Perdeu-se naquele dia chuvoso de verão.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

#gratidao

Desejo que você receba tudo o que merece do Universo, não o que deseja. Às vezes, nossos desejos são muito simplórios se comparados ao que o Criador tem a nos oferecer.

E você, como criatura maravilhosa que é, não deve ficar restrita ao que pode imaginar. Merece benesses inimagináveis.

Agradeço hoje e sempre pelo nosso encontro. Não é todo dia que temos a sorte de encontrar bons professores na vida.

(eu tive)

E com sotaque irlandês falsificado, te digo:
-  Until we meet again, may God hold you in the palm of His hand.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Na terra do coração

Nave, ninho, poço, mata, luz, abismo, plástico, metal, espinho, gota, pedra, lata.

Passei o dia pensando – coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só som-cor, ação – repetido, invertido – ação, cor – sem sentido – couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.

Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.

Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “I´m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.

Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos – ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.

Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu coração é teu.

(Caio Fernando Abreu in Pequenas Epifanias)

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Balada da despedida

Não é calafrio nem pressentimento ruim mas, assim do nada, deu uma vontade louca de me despedir das pessoas. Um desejo intenso de avisar que estou voltando pro meu planeta. É, aquele, a anos luz daqui.

Vontade de abraçar gente que não vejo há tempos e dizer o quanto já foram importantes pra mim. Pedir desculpas, não por qualquer coisa, mas por todas as coisas que sei que fiz e me arrependo.

Necessidade de fazer as pazes com alguns também. Ir tranquila, sabe? Planeta distante, combustível caro, essas dificuldades de mundos não muito desenvolvidos. Não rola uber nave. Vai saber quando volto ou se volto.

Então, numa espécie de manifesto de adeus digo pra vocês: muito obrigada por tudo!

E esse tudo foi: o carinho; os bons momentos que me fizeram feliz e os maus, que me ensinaram ou tentaram; a paciência; o ombro amigo; a bronca; o riso frouxo; a companhia; a cumplicidade; o amor e várias outras coisas indizíveis.

Adeus.
Gratidão.
Eu tô voltando pra casa!