Eu tenho tudo, você não tem nada. Mais uma vez e outra e outra. Desci do balanço enxugando as lágrimas com as costas da mão. Corri até a mãe, pedi que me levasse pra casa. Enquanto nos afastávamos do parque, eu ainda podia ouvir a voz da menina. Eu tenho tudo, você não tem nada. Eu tenho tudo, você não tem nada. Ela continuava. As pernas balançando no ar, vento no rosto, cabelo esvoaçando.
Essa é a primeira lembrança que me vem à cabeça quando penso na infância. É clara. Lembro das cores, dos sons, do rosto da garota com nitidez. Depois disso nunca mais a vi. Fiquei uma semana sem descer. Talvez ela tenha se mudado ou, não sei, bloqueei qualquer outra memória dela.
A adolescência foi estúpida, é claro. Fugindo das festinhas, com medo da meninas, escondendo as espinhas. O - tão sonhado - primeiro beijo valeu. Foi coisa de filme, sabe? Ela era loira, mais alta do que eu e bem charmosa. Olhava pra mim e ria. Aquele rosto escondia algum mistério. Eu, com quinze anos, nunca desvendaria o tal mistério. Fiquei inebriado.
Pegou meu rosto e perguntou:
- É teu primeiro beijo, guri?
- Não, senhora.
- É teu primeiro beijo, guri?
- Não, senhora.
Respondi sem jeito. Menti. Tentei disfarçar o nervosismo. São cinquenta reais, ela disse. Valeu cada centavo.
Primeira vez? Não sei, não me lembro bem. Acho que foi mais cara do que o beijo. A moça também não era lá grandes coisas. Foi tudo tão rápido que nem percebi o que havia acontecido. Tive que repetir muitas e muitas vezes até entender realmente como a coisa funcionava.
Ultimamente eu ando assim meio perdido em lembranças. Tento saber onde foi que eu quebrei. Não é maneira de dizer, não. E também não tem nada a ver com dinheiro. Estou quebrado, não falido. É dentro. Não sei como explicar. Taí! Um exemplo. Sempre fui bom com as palavras e agora não sei dizer o que sinto. É uma mistura de medo com desânimo.
Outro dia marquei um encontro pela internet. Agora vai, pensei. Encontros, ao meu ver, são momentos em que você se abre para o desconhecido. Quer contatar o outro ser que está ali vivenciando aquele momento com você. Acho que sou retrógrado, mas aquilo parecia uma entrevista de emprego. No fim, estava completamente exaurido.
É difícil passar muito tempo sustentando aquilo que você não é. Respondendo perguntas, tentando acertar quando ainda nem aprendeu. Deixei a moça na porta de casa e ela me perguntou se não queria entrar para um café. Limitei-me a dizer que sofria de insônia, dei as costas e saí.
Talvez eu não esteja quebrado. Talvez o mundo tenha estragado. Eu estou apenas dolorido de tanto remar contra a maré. Vou me arrastando pelos dias sem pensar, sem sentir. E vejo a vida me engolindo até quase sufocar. Uma vida que não quero viver.
Vejo gente mentindo, se preocupando apenas com a aparência. Numa correria louca para ter qualquer coisa que se anuncie na TV. Vivendo em um mundo onde a posse é predominante e o ser foi esquecido há bastante tempo. Um mundo em que a primeira frase de uma criança é: Eu tenho tudo, você não tem nada.
Vejo gente mentindo, se preocupando apenas com a aparência. Numa correria louca para ter qualquer coisa que se anuncie na TV. Vivendo em um mundo onde a posse é predominante e o ser foi esquecido há bastante tempo. Um mundo em que a primeira frase de uma criança é: Eu tenho tudo, você não tem nada.
2 comentários:
Não tem palavras para expressar o que você, e ninguém mais tem.
Ahhh se fosse assim... rsrs ;)
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