terça-feira, 25 de outubro de 2011

O que é normal?

- Eu gosto quando corta.
- Prefiro quando sangra.
- Desde que doa...
- Talvez.
- Não sei viver em paz.
- Nunca soube?
- Não. Tive uma infância difícil.
- Todos temos histórias tristes.
- Mas eu gostava.
- Adolescência?
- Completo abandono.
- E?
- Sentia-me mártir. Queria fazer mais. Ajudar os outros. Exigia de mim, do meu corpo, da minha cabeça. Satisfazia-me com a exaustão. Você?
- Tranquila. Criava os problemas e solucionava-os. A grande questão - o que pegava mesmo - naquela época era a cabeça. Quando me sentia diferente enveredava-me pelas profundezas da minha personalidade e ficava deprimida.
- E agora?
- Continua a mesma coisa, mas não sofro tanto.
- Melhor, não?
- Não sofrer é não sensibilizar o outro. Não se recebe tanta atenção, mas é possível viver assim.
- Sei.
- Entende?
- Sim.
- Eu gosto assim.
- Como?
- Com equilíbrio, mas na corda bamba. Sei o que deve ser feito. Às vezes, não faço. Desafio. E volto pro ponto neutro. Preciso de emoções mais fortes, mas aprendi - também - a dominá-las.
- Não conheço equilíbrio.
- Sempre só?
- Não. Tive família.
- O que aconteceu?
- Foram embora.
- Não te ajudaram?
- Não entenderam.
- Seu sofrimento?
- A motivação.
- Agora, acho que nem eu entendi.
- Sempre fiz tudo por eles. Cuidei de marido, filhos, casa e até de bichos. Sustentava financeiramente e, também, emocionalmente.
- E eles não ficaram gratos?
- Não. Simplesmente aprenderam a viver sozinhos. Cresceram, talvez.
- E foram embora?
- Não, ficaram comigo até eu adoecer.
- E então...
- Eu desisti.
- Deles?
- Da vida.
- Por que?
- Perdi o grande objetivo.
- O que faltou?
- A falta.
- De quem?
- De mim. Em um dado momento vi que a minha presença não era indispensável. Eles não precisavam de mim para viver. Apenas queriam a minha companhia. Foi aí que não consegui mais viver.
- Tentou suicídio?
- Abandono.
- Mas não foram eles que te deixaram?
- Sim. Mas antes disso, bem antes, deixei o emprego. Aposentei-me por invalidez. Dizem loucura por lá. No laudo está escrito invalidez. Daí por diante não sei descrever bem o que aconteceu primeiro.
- Não se lembra?
- Vagamente. Dormia muito. Os meninos já não conversavam comigo. Marido, então, só trabalhava.
- Nenhum diálogo em casa?
- Eles conversavam. Eu não entendia. Ninguém precisava de mim. Eles apenas queriam a minha companhia, já disse. E, sem que eu percebesse, deixaram de querer. Um dia acordei e a casa estava vazia. A verdade é que felicidade mata. Destrói. Afinal, quem quer - realmente - viver em paz?
- Alguns dizem que...
- Balela!
- Não acredita que possam...
- Não conheço quem viva bem sem agruras.
- Só lhe sobrou amargura?
- Não, mantenho a altivez. Mas me diga, e você? Disse que gosta quando sangra...
- Sim. Nos outros. Semprei gostei da cor vermelha.

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