Preciso escrever uma história. Quero contar a minha história. Mas, por onde começar? Pelo meu nascimento. Não, não. Poucas lembranças para isso. Talvez, pela adolescência. Não, também não. Ah, já sei! Sapatilhas de balé! É isso.
Fazia muito frio naquela tarde. Chovia uma chuva fina e incômoda. Gelava de doer os ossos. Havia saltado do ônibus para ir à loja das bailarinas. Depois de dois quarteirões, notei que andava na direção contrária.
Saí da aula correndo para comprar as sapatilhas de ponta e precisaria correr mais ainda se quisesse chegar no balé antes do aquecimento. Seria o terceiro atraso do mês. O suficiente para ser cortada da apresentação.
Entrei na loja encharcada e sem fôlego. Não tinham o meu número. Deixei o telefone para quando chegasse a encomenda e me pus a correr novamente. Isso é vida?, pensei. Tomei um táxi e consegui cumprir o horário. Lá se foi o dinheiro do mês.
Calcei as sapatilhas rasgadas, torci a roupa o mais que pude antes de vesti-la e fui para a sala parecendo um pinto molhado. Cabelo arrepiado, tremendo de frio.
- Não tem guarda-chuva, Cecília?
- Não, senhor.
Foi o único diálogo.
Três horas depois e me lembrava perfeitamente o motivo daquele esforço todo. Sim, dançar vale qualquer intempérie. Dançar é a minha vida. Só existo quando danço.
O empenho daquelas últimas semanas fora recompensado. Primeira bailarina, disse a professora, desde que arranjasse as benditas sapatilhas novas, é claro. Voltei para casa sonhando com o Bolshoi, entrevistas, televisão, fama e dinheiro. Seria tão conhecida quanto a Ana Botafogo. Aliás, perguntariam "Quem foi Ana Botafogo?" ao me assistir.
Faltavam dois meses para o grande dia e já me sentia aclamada pelo solo espetacular que faria. Havia sido escolhida. A escolhida! Entre mais de cinquenta meninas. O que poderia dar errado?
Hoje sei que certas perguntas não devem ser direcionadas ao Universo. Tudo, absolutamente tudo, poderia dar errado. Naquele tempo, ainda não havia aprendido a pensar assim.
A maldita chuva colocou-me na cama por duas semanas. O suficiente para perder os ensaios e, também, a porcaria da sapatilha. O vendedor ligou, não pude buscar, vendeu para outra. Ao treinar em casa, doente, com a velha, torci o pé.
- Que ideia, menina!!! Dançar nesse chão de ardósia?
- Mãe!
- Gesso e fisioterapia, obedeça o médico.
- Mas, mãe?
- Essa conversa já terminou!
Foi exatamente assim que tornei-me taquígrafa do Senado.
Então, quem disse que frustrações não levam a lugar nenhum? Levam, sim. Levam ao funcionalismo público, não é mesmo?
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