quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Momentos

III

Naquele tempo eu mal respirava. O corpo jazia abandonado. Os pensamentos sempre embaralhados. Sem rumo. Combalida.

Às vezes, sentia-me envolta em uma bolha. Algo como um gel a preenchia. Calava minha boca. Cessava meus movimentos. Ainda assim me movia. Trôpega, cambaleante. Uma versão patética de mim mesma. Ora lutava, ora cedia.

Outras, experimentava o mormaço vindo do asfalto na face. As dores espalhavam-se. Impossível determinar a origem. Levantava-me débil. Desorientada.

A vida resumia-se em míseros lampejos de sobrevivência e grandes períodos de estagnação. Sensações latentes. Pusilânime, não ousava encarar o que fosse. Olhar de esguelha.

Um dia me atiro de vez, pensava. Um dia me largo e morro de desgosto. Nesse dia, decidida a deixar tudo, te encontrei.

Você, com cuidado, tirou a lama do meu rosto. Delicadamente, lavou as pústulas e fez com que secassem. Limpou as nódoas do corpo deixando-me, novamente, imaculada. Lambeu minhas feridas quando eu não tinha mais forças.

Deu colo, carinho, amor. Prometeu ficar. Jurou cuidar. Colou meus cacos um a um.

Curou a alma.

Momentos

II

Excruciante saber que a escolha não me incluiu. Doloroso reconhecer que não há o que se possa fazer.

Vejo-te, cabisbaixo, carregando a opção como um peso pregado às costas. Oprimido, arrependido, perdido.

Não existe palavra no mundo para aliviar sua dor. Não há ato no mundo que corrija o curso dessa história. São duas retas paralelas que, contrariando todas as leis conhecidas, não se encontrarão no infinito.

Talvez em outra dimensão. Em alguma realidade paralela você estará sentado, sereno, à minha espera.
Eu chegarei de vestido florido, sorriso daqueles que insistem em permanecer nos lábios e te direi "vem? ".

E você se levantará para me tomar em seus braços. Não dirá uma palavra sequer, pois não existirá palavra no mundo com permissão para partilhar esse momento.

Conheceremos a felicidade plena. Numa outra dimensão. Numa realidade paralela.

Peço mais um café. Você se despede desculpando-se pela pressa.

- Dê lembranças à Renata, diga que achei o pequeno muito bonito. Qualquer dia apareço por lá.

Você se limita a sorrir.

Acendo mais um cigarro. A fantasia desfeita não torna à mente.

- Alô? Não, meu bem. Chego tarde. Não precisa me esperar para jantar.

- As suas amigas são loucas, alcoólatras ou alcoólatras e loucas.
- Nem todas.
- Quem se salva?
- ...

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Momentos

I

Sinto-me congelada, paralisada, esperando ao pé de uma porta que nunca se abrirá. Ouço o que se passa por trás da porta. Toco-a. Mas continua fechada. Cochichos, risadinhas e gritinhos. Elas, em frêmitos, deleitam-se. 

Acaricio a porta. Estendo os dedos o máximo que consigo como se assim fosse transpor a barreira. Fecho os olhos, conto até dez. Invento truques, feitiços, encantos. Agora, agora no dez a porta desaparecerá e serei eu a cochichar, rir, gritar. Conto à exaustão. Dez vezes dez vezes dez. Quanto dá?

Anoitece. Elas cantam. Imagino que fazem roda. Devem estar todas de mãos dadas que - mesmo suadas - não se desenlaçam. Trocam promessas de amizade eterna e se abraçam.

Penso que já estão a se despedir. Não ouço mais nada. Está frio.

Amanhã! Amanhã abrirão e serei eu, em frêmitos, a me deleitar.

Deito-me ao pé da porta e adormeço.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

As coisas

Precisa-se de tempo para todas as coisas. Precisa-se das coisas primeiramente.

As coisas dividem-se em categorias. Multiplicam-se em número. As velhas coisas. Nem sempre velhas. Mas sempre coisas.

O tempo das coisas é o tempo delas. Não se interfere no tempo das coisas. Nunca.

Coisas são feitas, compradas, pedidas, negadas. Coisas podem ser boas, nefastas. Podem ser tudo e nada. Coisas, algumas vezes, são inexplicáveis.

Elas podem, ainda, ser suas ou de outro. Em teoria cada um cuida das próprias coisas. Na prática, percebo que tem muita gente querendo tomar conta das minhas.

Mas de tudo isso, a coisa que mais gosto é que independentemente da coisa que aconteça tem sempre uma coisa que supera.

E a gente segue por aí.
Essa coisa, sabe?

Olha só...

(command+r) ≠ milagre

©

Momento mimimi

O horóscopo diz "apenas chateada". Discordo. Também cansada, irritada, desgastada e, um tanto, enjoada. Semana da morte. Foram-se as convicções, os amantes, os amigos.

Até a alma - que andava tão bem - resolveu morrer. Sendo reencarnação de fênix, renasceu. Resquícios do passado. Atavismo.

Outras mortes permearam. Aquela que não esqueço, a de alguém pouco conhecido, mas já querido e  mais uma porvir.

Morte no tarô é transformação. Deve ser porque vai do corpo ao pó. Ou talvez da alegria ao vazio. Nunca me detive nesses pensamentos.

Não quero morrer. Não agora.
Mas morreu.
Mais uma que se foi.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Agravação

É negro e denso. Parece uma massa. Tumor. Quase real. Tal qual um câncer desenvolvendo-se lentamente. Espalhando-se silenciosamente. Busca dominar toda a extensão da alma. Sem perspectiva de cura, alastra-se.

Abre meu peito e encontra morte. Traços do que fui ou poderia ter sido. Está tudo morto.

Deve-se, então, retirar os pedaços mortos. Devo, então, aprender a conviver com as cicatrizes.

Sofrimento irreal ocasionado por doença imaginária. Quase lírico. Se não atormentasse. Não tirasse o sono. Não provocasse desassossego.
Se...

Inquieta. Não quero causa ou motivo.

Precisa-se de silêncio. Paga-se bem!

É preciso silêncio, respeito, contrição. Estamos em luto.

Por favor não fale, não sorria, não respire. Minha alma morreu. Feneceu antes mesmo de desabrochar.

Aqui jaz um corpo vazio. Murcha de sentimentos. Seca de emoções. Árvore retorcida sem folhas, frutos ou razão de existência.

Silêncio!
Minha alma morreu.

Estamos em luto.

sábado, 13 de outubro de 2012

Atualizando: comprei o Big Tasty. A moça que cuida de mim e limpa o apartamento comeu. Três meses sem sanduíche.
Observação: Ela cuida de mim mesmo!

domingo, 7 de outubro de 2012

Sonhos

Gervásio disse a Mariinha que ficasse só na varanda. Parece, até, que não conhece criança. Foi virar as costas e a menina já estava no quintal. Catando pitomba. Correndo. Atirando pedras nos passarinhos.

Mariinha é menina levada. Só tem irmãos. Nunca brincou de boneca. Gervásio preocupa-se mais com os vizinhos do que com a própria filha.

- O que vão pensar de você, Mariinha?
- Por que alguém tem que pensar em mim?
- Menina, se continuar assim, quando crescer não casa.
- Blergh!

E saía correndo. Mariinha não quer casar. Mulheres morrem quando casam, pensava. Casamento só faz chorar. Vovó casou e morreu, mamãe também. Eu não vou morrer. Não caso, não caso, não caso!

- E vai fazer o quê, Mariinha?
- Conhecer o mundo, aprender a falar com essa gente que tem um dizer estranho, ir nos lugares que aparecem na televisão. Estudar, trabalhar, ter dinheiro. Vou ser grande, oras! Não é isso que gente grande faz? Sai por aí sem avisar?

Gervásio nunca se deu o trabalho de explicar direito. Casar é bom, um dia você vai querer. As mulheres nascem e crescem pra isso. É pra casar e ter filhos que as pessoas estão no mundo.

- E a minha mãe?
Virou estrelinha, ele respondia e se calava.

Mariinha, feliz com suas pitombas, brincava no quintal. Foi nesse dia em que Zeca chegou. Menino franzino, desconfiado, viu as pitombas, olhou pra Mariinha e parou. Ficou ali, estático. Mariinha logo ofereceu-lhe a fruta.

- Você quer? Não é muito gostosa, mas agora só tem essa.
- O que é isso?
- Pitomba.
- É de comer?

Mariinha achou esquisito alguém que não conhecesse a fruta. Nem respondeu. Comeu. Olhou de novo o menino e estendeu o cacho. Ele repetiu os gestos dela. Achou o gosto horrível, mas não quis parecer estranho. Comeu também.

Zeca era recém-chegado na vizinhança. Vinha da cidade. Morava só com a mãe. O pai havia falecido há pouco.

Passaram toda a tarde no quintal. Mariinha mostrou o balanço de pneu. Foi até o córrego. Inventaram brincadeiras com ferramentas, caixas e latas abandonadas.

Não muito antes de Gervásio retornar, Mariinha, exausta, despediu-se de Zeca. Marcaram um novo encontro na tarde seguinte.

- ... assim que meu pai sair.
- Pode deixar!

Correu para fazer a lição de casa e tomar banho. Recebeu o pai na porta com os olhos brilhando.

- Pai, quando eu posso casar?
- Quando crescer, Mariinha.
- Mas, pai...
- O que é, menina?
- Quando é que eu vou crescer?
- Quando crescer, Mariinha. Por quê?
- É que o Zeca...
- Que Zeca?
- O Zeca é o meu amigo, pai. Ele mudou pra cá. A gente comeu pitomba. Ele gosta de brincar no quintal. Gosta de correr, de pular corda, nadar no córrego. Ele vem amanhã de novo. Amanhã eu já cresci, pai?
Eu disse sim. Ele não...
Ficamos assim, sem ponto, sem vírgula.
Reticências eternas deixando latente o querer.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Gata

Gata, leniente, desliza macio, mia baixo, rouca, complacente. Voluptuosa, transita em todos os planos.

Gata, lânguida, sai à procura. Escolhe, caça, mata.

Gata, preguiçosa, recolhe-se. Lambe as patas, a barriga, espreguiça-se e deita.

Gata, cansada, dorme. Sem se importar com o mundo que continua girando, pois o mundo gira em seu redor.
Assim como o texto, nunca estou pronta. Há sempre o que se moldar, aperfeiçoar, corrigir. Trocar ideias. Trocar as ideias. Pensamentos e convicções. Tudo é vento.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Desaguando

A chuva choveu em mim. Num dia desses, qualquer, de solidão e de calma. Molhou meu rosto, meu corpo e atingiu a alma.

Preencheu meus espaços vagos com pingos de possibilidades. Fez-me embebida em esperanças.

Assim, chovida, andei descalça pelas ruas. Acreditando ser água, chovi também. Ensopei quem me seguia. Molhei de alegria aqueles que observavam. Pinguei felicidade. E fui água.

E enquanto era água, era completa. Não por ter companhia. Pois ao me sentir água, a chuva cessou. Mas por pertencer. Era gota em oceano.

Por fim, sequei de tanto desaguar. Mas a chuva tornou a chover em mim. Disse-me que pertencia à ela. Também ao céu, à terra, ao ar e ao mar.

Choveu tanto, tanto, tanto que me desfiz. Virei chuva então. Dissipei minhas gotas displicentemente. Espalhei minha água até evaporar.

Gotas de alma caem nos mortais. Uns choram, outros sorriem. Mal sabem que a chuva é feita de almas.

Dessas que se encantam de tanto amar sem saber. Dessas que se transformam para compartilhar. Dessas que morrem para permitir a sobrevivência alheia.