sábado, 26 de abril de 2014

Romance

Então resolvi apimentar a relação. Sim, e daí?  Dez anos de matrimônio levam à rotina, por mais que se cuide do relacionamento.

Bom, comprei uma fantasia daquelas vendidas por internet. Minhas amigas acharam o máximo. Fiz regime durante um mês pra ficar realmente gostosa naquela roupa esquisita e desconfortável.

Escolhi a noite perfeita. Ele iria sair mais cedo da empresa. Liguei com a desculpa de que precisava de uma opinião sobre o projeto de reforma que estava fazendo em um hotel. Combinamos às 21h, na suíte modelo.

Às 20:30, já estava pronta. Fantasiada, maquiada, lençol de cetim com pétalas de rosas em cima da cama. Velas aromáticas no banheiro e óleo perfumado no ofurô. Um balde com gelo e Champanha cara em cima da mesa.

À meia-noite, desisti de esperar. Abri a bebida e fui para o ofurô. Acendi um baseado que comprei de uns moleques atrás do hotel, num posto de gasolina, e resolvi relaxar.

Ficou no bar com os colegas. Esqueceu o compromisso. Ainda ligou na manhã seguinte, aos berros, querendo saber onde eu estava.

terça-feira, 8 de abril de 2014

COR-TA!!!

De novo
Valendo!

- Fruta?
- Abóbora.

Corta!

- Meu bem, abóbora não é fruta.
- Desculpa. Fico nervosa em entrevista.
- É só um bate-bola. Coisa fácil. Relaxa..
- Vou tentar. Abóbora é o que mesmo?
- Sei lá, verdura. Não. Verdura é verde. Acho que é legume. Enfim, não é fruta.
- Entendi. Morango, então.
- Sim, morango é fruta. Mas não pode ser ensaiado, senão fica falso.
- Entendi, entendi.

Vamos lá?
Valendo!

- Livro de cabeceira?
- Morango!
- Oi?

Corta!

- Você mudou a pergunta!
- Avisei que não podia ser ensaiado. Você nunca leu um livro?
- O pequeno Príncipe...
- Só esse?
- Até a metade...
- Entendi.

Pessoal, va-len-do!

- Filme preferido?
- É... é...  já filmaram O Pequeno Príncipe?
- Que ótima ideia! Ainda não. Qual personagem você gostaria de representar se fosse filmado?
- A rosa, é claro.
- É claro. Então, agradecemos a presença da atriz principal da nova novela das oito, que estreará na próxima semana, a grande... qual é o seu nome mesmo?

CORTA!!!

- Coracy, meu nome é Coracy Nunes, mas não vou fazer novela nenhuma não.
- O quê? O que você está fazendo aqui?
- Eu entrei aqui pra passar pano na sala enquanto estava vazia. Sentei nessa cadeira e peguei no sono. Acordei com as luzes e o senhor já foi fazendo um monte de perguntas... fiquei. É feio deixar os outros falando sozinhos, não é?

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Sonhos

Preciso escrever uma história. Quero contar a minha história. Mas, por onde começar? Pelo meu nascimento. Não, não. Poucas lembranças para isso. Talvez, pela adolescência. Não, também não. Ah, já sei! Sapatilhas de balé! É isso.

Fazia muito frio naquela tarde. Chovia uma chuva fina e incômoda. Gelava de doer os ossos. Havia saltado do ônibus para ir à loja das bailarinas. Depois de dois quarteirões, notei que andava na direção contrária.

Saí da aula correndo para comprar as sapatilhas de ponta e precisaria correr mais ainda se quisesse chegar no balé antes do aquecimento. Seria o terceiro atraso do mês. O suficiente para ser cortada da apresentação.

Entrei na loja encharcada e sem fôlego. Não tinham o meu número. Deixei o telefone para quando chegasse a encomenda e me pus a correr novamente. Isso é vida?, pensei. Tomei um táxi e consegui cumprir o horário. Lá se foi o dinheiro do mês.

Calcei as sapatilhas rasgadas, torci a roupa o mais que pude antes de vesti-la e fui para a sala parecendo um pinto molhado. Cabelo arrepiado, tremendo de frio.

- Não tem guarda-chuva, Cecília?
- Não, senhor.

Foi o único diálogo.

Três horas depois e me lembrava perfeitamente o motivo daquele esforço todo. Sim, dançar vale qualquer intempérie. Dançar é a minha vida. Só existo quando danço.

O empenho daquelas últimas semanas fora recompensado. Primeira bailarina, disse a professora, desde que arranjasse as benditas sapatilhas novas, é claro. Voltei para casa sonhando com o Bolshoi, entrevistas, televisão, fama e dinheiro. Seria tão conhecida quanto a Ana Botafogo. Aliás, perguntariam "Quem foi Ana Botafogo?" ao me assistir.

Faltavam dois meses para o grande dia e já me sentia aclamada pelo solo espetacular que faria. Havia sido escolhida. A escolhida! Entre mais de cinquenta meninas. O que poderia dar errado?

Hoje sei que certas perguntas não devem ser direcionadas ao Universo. Tudo, absolutamente tudo, poderia dar errado. Naquele tempo, ainda não havia aprendido a pensar assim.

A maldita chuva colocou-me na cama por duas semanas. O suficiente para perder os ensaios e, também, a porcaria da sapatilha. O vendedor ligou, não pude buscar, vendeu para outra. Ao treinar em casa, doente, com a velha, torci o pé.

- Que ideia, menina!!! Dançar nesse chão de ardósia?
- Mãe!
- Gesso e fisioterapia, obedeça o médico.
- Mas, mãe?
- Essa conversa já terminou!

Foi exatamente assim que tornei-me taquígrafa do Senado.

Então, quem disse que frustrações não levam a lugar nenhum? Levam, sim. Levam ao funcionalismo público, não é mesmo?

terça-feira, 1 de abril de 2014

A estreia

Foram meses de ensaio. Trabalho árduo. Primeiro solo de sua carreira. Ele, pela idade avançada ou por tradição, insistia em denominar monólogo. Os amigos faziam coro: Shakespeare não é pra qualquer um.

À medida em que se entregava à direção, à manipulação do outro, perdia-se. O medo o dominava. A falha, neste caso, seria trágica. Aquele papel definiria sua vida.

Pesquisou autor, época, história. Decorou texto, trejeitos. Aprendeu línguas. Por fim, desenvolveu um novo modo de pensar, agir e reagir. Tornou-se personagem em vida. Levou a fantasia para a realidade. Ultrapassou a mimese.

Quando o grande dia chegou, estava irreconhecível. Pré-estreia fechada. Imprensa e convidados do diretor. Casa lotada. Ao fim do terceiro sinal, silêncio absoluto.

Soberano, reinou no palco desde a primeira cena até o último aplauso. Foi generoso ao agradecer a oportunidade dada pelo diretor e a presença de tão ilustres convidados. Brilhou no coquetel ao compartilhar a experiência obtida no processo. Dormiu exausto e satisfeito.

Enfim, a estreia! Como superar a atuação do dia anterior? Coragem!, repetia para si mesmo. E não era para aquilo que vivia?

A cena repetiu-se. Casa lotada. Silêncio.

Palco vazio. Atrasou a entrada. Esqueceu o texto. Pânico. Foram os dois minutos mais longos de toda a sua existência. Encarou a plateia, sorriu, percebeu o que deveria fazer.

Atuou de forma ainda mais perfeita. Representou tão bem que o público custou a entender porque todo o teatro se iluminou quando o personagem suicidou-se. Alguns, acreditam até hoje que a ambulância era parte da encenação.