segunda-feira, 31 de março de 2014

Inocência

Puxava meu cabelo. Implicava com tudo o que eu fazia. Mas, ao mesmo tempo, queria estar sempre ao meu lado. Ria das bobagens que eu dizia e me tirava pra dançar na seresta da igreja. Só pra eu não ficar encostada na parede a noite inteira, dizia.

De repente, sem mais nenhum aviso, a pergunta.

- Me dá um beijo?
- Não posso... Tenho que perguntar, antes, pra minha mãe.
- Você pergunta e volta?
- Tá!
(...)

- Mããããããããããããããe...

(...)

Um beijo desajeitado, rápido, seguido de olhares tímidos e sorrisos envergonhados. Corri de novo para casa. Entrei, bati a porta e fui direto para o banheiro. Precisava ver-me no espelho. Agora sou mulher, pensei. Enrubesci novamente. Coração acelerado e mãos trêmulas, não sei - até hoje - se pela corrida ou pelo beijo.

Foi assim, a descoberta do primeiro amor. Não teve outro beijo depois daquele. Andávamos de mãos dadas. Jogávamos queimada no mesmo time. Ele emprestava-me o carrinho de rolimã em troca do meu skate. E, em seu ato mais cavalheiresco, não mirava meu rosto quando fazíamos guerra de mamona.

Engraçado, parece que até hoje é assim. Eles provocam,  resmungam e fazem grosserias. Quando vêem o tanto que nos magoam, catam uma florzinha no canteiro e nos entregam com olhinhos cheios de culpa e remorso.

domingo, 16 de março de 2014

Espelho, espelho meu...

Repetiu o ritual de todas as manhãs. Levantou, olhou-se no espelho e constatou, mais uma vez, a ação dos anos. O tempo não era seu amigo, definitivamente.

Puxou o rosto com as mãos e imaginou como uma simples cirurgia poderia melhorar o seu humor matinal. Ficou alguns minutos em êxtase. Fantasiou festas, olhares apaixonados, elogios espontâneos. Tudo o que a juventude traz sem qualquer esforço.

Partiu, então, para o escrutínio do corpo. A barriga... Sempre a barriga! Quando aquele amontoado de gordura tinha surgido? Não sabia precisar. Porém, notava o crescimento dia após dia. Outra intervenção cirúrgica, pensou. Assim, ficaria bem humorada e feliz.

Esboçou, ainda, uma olhadela nas estrias e celulites, mas já estava irritada demais para perder tempo com isso. Entrou no banho jogando a toalha sobre o espelho para não acabar com o dia de vez.

Dia interminável no trabalho. Os problemas amontoando-se em pilhas somados a um chefe intragável faziam-na sentir-se completamente desgastada. Não só trabalho, uma lista enorme de afazeres também e nenhuma, nenhuma motivação.

Arrastou-se do escritório para a academia. Cumpriu a obrigação com má vontade desviando, como podia, seu olhar dos espelhos cruéis. Tomou banho e vestiu-se no reservado. Correu para a última tarefa da noite: terapia. Por que mesmo que precisava de terapia? Nem se lembrava. Recomendações médicas ou algo do gênero.

- Não, você ainda não pode ter alta.
- Por quê? Sinto-me tão bem e...
- Você tem 25 anos e não consegue se ver como é. Anorexia nervosa é uma doença séria e precisa de tratamento. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

Eu gosto de listas

Dez coisas que não gosto
Desprezo
Descaso
Desatenção
Desinteresse
Desmesura
Desonra
Desterro
Desonestidade
Desvirtude
Desamor

Uma coisa que eu gosto
Desapego


terça-feira, 4 de março de 2014

Riscos

O meu maior medo? Ser feliz. É verdade, juro. Felicidade inebria, alastra-se, vicia e - por fim - acaba. Mas não termina simplesmente igual ao último brigadeiro que deixa a bandeja apenas vazia. Fim de felicidade traz dor. Mágoa, às vezes, e sofrimento. Por isso evito qualquer tipo de alegria.

E não é só isso. Passo longe do amor também, que é outro sentimento terrível. Não me julgue mal. Não é que eu não seja romântica. Até gostaria de encontrar minha alma gêmea, penso. Mas o terror de vê-la ir embora me faz guardar distância do amor. Então, evito qualquer tipo de contato.

Não ando descalça pra não me cortar. Não tomo sol pra não ter câncer. Não tomo sorvete pra não ter dor de garganta. Não saio à noite porque o sereno pode deixar-me resfriada.

Sou precavida e faço boas escolhas. Guardo a vida que me foi dada para… para quê mesmo? Ah! Pra viver depois…