terça-feira, 10 de outubro de 2017

Só de mim

Com certa dificuldade o velho cruzou a esquina. Apoiava-se na bengala de ferro. Presente do seu filho do meio pelos 81 anos recém completados. Nunca dei fraldas de presente e agora recebo uma bengala. 

- É útil, papai, é útil...

Grandes merdas. Depois reclamam quando digo que filho do meio não presta pra nada. 

Atravessou a rua e foi sentar-se na cafeteria. As mãos trêmulas quase o traíram derrubando o café com leite na calça. Foi por pouco. Estava vestindo sua melhor roupa - roupa de ver a Deus - como dizia sua falecida mãe.

Jogou migalhas de pão para os pombos e tornou a andar. Deteve-se por alguns minutos olhando os novos televisores na vitrina da loja de eletrônicos. Tempos modernos, agora as coisas saem de dentro dos televisores e ficam passeando pela sua casa. Se o Jornal Nacional fosse nesse 3D, há um tempo atrás, chamaria o Cid para jantar lá em casa. A mulher ia cair dura. Batata que ia!

Andou até a farmácia, pegou os remédios, continuou até a casa da filha mais velha, pegou a neta. Sextas e sábados ficava com a neta para que a filha pudesse sair e, quem sabe, arrumar um novo marido. A filha havia ficado viúva tão cedo que fazia dó. Dez anos e continuava sozinha. Foi por encorajamento do pai que voltou a se relacionar, mas colocava defeito em todos.

Os homens que conhecia sempre tinham algum defeito grave. Alto demais, baixo demais, gordo, magro, cara de cafajeste, muito bonzinho, estúpido, lindo...

- Lindo???
-  É, lindo... O que um cara lindo como esse vai querer comigo? Ele deve sair com modelos. Sou uma mulher comum, papai, você não entende? Ele é lindo demais e ponto final, não vou jantar com ele.

O pai riu, o mau gênio vinha da parte dele.

Assim passavam-se os dias. Ele tinha uma rotina com tantos afazeres que pensava em pedir uma segunda aposentadoria para os filhos. Não precisariam lhe dar dinheiro, tinha o suficiente, queria apenas sossego. Na época em que trabalhava no escritório tinha tempo, dizia que estava ocupado e fazia o que queria.

Agora não, agora faço o que me mandam. Eles dizem que pedem, mas se recuso, pronto! É cara feia pra um ano. Passo a semana inteira sem tempo para mim, é um tal de pegar a roupa de um na lavanderia, levar não sei quem na aula de espanhol, buscar salgadinhos pra festa que não fui convidado e até ficar em fila para comprar ingresso de show, pode?

Estava ficando ranzinza. Velho e ranzinza. Ralhava com os netos, com os filhos e também com os vizinhos. Ia ao baile semanal só para falar mal dos outros. Poupava apenas os mortos. Esses ganhavam uma espécie de salvo-conduto de sua língua ferina. Não tem mais como se defenderem, só por isso. A única que recebia agrados e palavras doces era a neta. Ela não tem pai, alguém tem que cuidar. Melhor, então, que seja eu.

A menina já ia completar quinze anos, mas ainda era franzina. Simpática, educada, estudiosa e feia. Indubitavelmente feia. Estudava muito para não dar desgosto à mãe. Tinha quatro anos quando o pai morrera, mal se lembrava dele, sabia quem era pelos retratos que tinha em casa. A mãe não falava dele nunca. O avô não gostava muito de seu pai. Ah, mas o avô não gostava de ninguém, né? Só de mim. O avozinho gosta só de mim.

Ela - além de feia - era sem graça, nem sabia conversar. Não tinha amigas de sua idade. Fora criada com adultos e, no mundo deles, raras vezes era convidada a emitir opinião. Quando o fazia era sempre com a insegurança daqueles que são interrompidos em suas ideias, mas afinal, o que ela sabia das coisas?

Sabia ir à escola. Sabia ficar calada. Sabia ir à casa do avô. Sabia sonhar acordada. Isso ela sabia bem. Os dias na casa do avô eram os seus preferidos. Não diziam nada, mas ela podia comer doces, ver televisão até tarde, usar as roupas e jóias da falecida avó. Ela gostava de fingir que era a dona de casa e seu avô compartilhava da sua fantasia. Na brincadeira ela era outra, era bonita, adulta, interessante e mandava em tudo.

Nesses dias o avô sentia-se renovado, disposto, nem sombra do velho ranzinza. Todas as sextas e sábados, à noite, quando a neta finalmente se despia e deitava em sua cama.

A neta, repetindo os gestos da mãe. A neta, que era também sua filha, às sextas e sábados, era apenas uma mulher.

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