terça-feira, 28 de abril de 2015

Para todo o sempre

Nam-myoho-rengue-kyo,
Nam-myoho-rengue-kyo, 
Nam-myoho-rengue-kyo, 
Nam-myoho-rengue-kyo, 
Nam-myoho-rengue-kyo.

Sentada, de frente para o altar, as mãozinhas na altura do pescoço segurando uma espécie de terço, olhando fixamente para o pedaço de papel velho pendurado num pedaço de madeira rústica. Bateu o sino, uma, duas, três vezes.

Muito tempo depois, explicou-me que não era bater o sino, mas sim, convidá-lo a soar.

Foi a primeira vez que a vi. Uma simples entrega de livros. Acompanhava a cena atentamente enquanto aguardava o pagamento. 

A casa era a mais diferente que tinha conhecido até então. Não que conhecesse muitas, mas um vizinho mais abastado convidava a molecada da rua vez ou outra para assistir programas “do estrangeiro” em sua casa, então não era de todo ignorante.

O que eu nunca tinha visto mesmo, era uma menina tão bonita como aquela. Parecia delicada, frágil, doce. Podia ser comparada a uma boneca, dessas que se quebram toda se apertadas. De porcelana, acho. Dessas, que tem a boquinha bem pequenina, pintada à mão, num tom vibrante de vermelho.

Subitamente fui tirado do transe.

- Não senhor, não trouxe o troco. Imagina! Fica... fica um desconto pro senhor. Pode ser? Assim vira freguês.

Desconto que, óbvio, sairia do meu salário! Dinheirinho muito bem pago se fosse chamado para outra entrega ali. Aliás, já estava bem pago só com aquela primeira visita.

Meses se passaram e nada de voltar a aquele endereço. Nunca mais pediram nada. Achei até que haviam mudado de cidade. Sonhava com os olhinhos puxados e acordava suado, com o coração disparado. 

Ah! Foi nessa época também que aprendi o que era um coração disparado. Nenhuma corrida, jogo de futebol ou bronca do meu pai tinham o poder daqueles olhinhos puxados. Pensar neles já fazia o tal do coração quase pular pela boca.

A imagem da menina acompanhou-me por toda a adolescência. Depois, acabei esquecendo. Ocupei-me com outros assuntos, estudos e alguns namoricos. De quando em quando, após uma separação um pouco mais doída, ela voltava.

Sonhava que ela aparecia na livraria, pegava um livro ao mesmo tempo que eu e nossas mãos se tocavam. Ali, acontecia a paixão, enfim, correspondida. Olhávamo-nos. Um olhar longo, demorado, profundo. Beijávamo-nos antes de qualquer palavra ser pronunciada. 

Depois disso, várias fantasias com enredos rebuscados. Mas no final, sempre nos casávamos. Uma casinha boa com cerca branca e varanda, bichos no quintal e filhos barulhentos correndo nela.

Nunca aconteceu.

Estava recém separado de Lúcia quando finalmente a encontrei. Demorei um tempo para reconhecê-la. Envelhecera, mas os olhos, os olhos eram os mesmos. Aqueles olhinhos infantis que um dia vi, tão esperançosos, fixos no papel velho, tornaram-se mais vagos, um pouco perdidos, talvez. Mas tinham algum o brilho. Com um pouco de esforço, era possível notar aquele antigo brilho tão especial.

O pai falira pouco depois daquele ano em que a conheci. Cresceu tentando estudar, trabalhando aqui e ali para ajudar a família. Era a mais velha dos sete. Aos poucos, foi desistindo. Dos estudos, dos trabalhos, da vida.

Morava na rua 8, mas fazia ponto na baixada. Naquele dia estava a passeio no bar. Quando, por fim, lembrou-se de mim, ofereceu-me um programa com desconto. Pela “quase” amizade de infância que tivéramos, disse com um sorriso irônico. Acho que se agarraria a qualquer coisa que tirasse seus pensamentos da realidade em que vivia e a levasse para os anos felizes da infância.

Aceitei, constrangido, mas aceitei.

Tentei uma ou duas vezes. Não consegui. Conversamos a noite toda numa espelunca que ela chamava de hotel e fazia preços fantásticos conforme a quantidade de fregueses que ela levava durante a semana. Despedimo-nos pela manhã. Quis pagar-lhe um café. Não aceitou.

Não tive coragem de voltar ao bar. 
Não. Nunca mais.
Nunca mais passei por aquelas bandas. 

De repente, minha memória começou a me pregar peças. O olhar era parecido sim, mas a boca, a boca não lembrava em nada aqueles lábios perfeitos da boneca de porcelana que conheci. Não. Não era ela. Não podia ser ela. Estava bêbado. Aquela mulher era uma qualquer. Fingiu ser minha menina só pra tomar meu dinheiro. Que idiota que fui!

Minha menina permaneceu guardada, intacta, inviolável, linda e pura. Para sempre. No meu coração.

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