quarta-feira, 29 de junho de 2011

Eu tenho tudo, você não tem nada

As pernas balançando no ar, vento no rosto, cabelo esvoaçando. Eu tenho tudo, você não tem nada. Ela repetia. Eu tenho uma bola! Gritei. Balançava para frente e para trás e no mesmo tom monocórdio entoava: Eu tenho tudo, você não tem nada. Eu tenho videogame! Eu tenho tênis novos! Eu tenho playmobil! Berrei em desespero.

Eu tenho tudo, você não tem nada. Mais uma vez e outra e outra. Desci do balanço enxugando as lágrimas com as costas da mão. Corri até a mãe, pedi que me levasse pra casa. Enquanto nos afastávamos do parque, eu ainda podia ouvir a voz da menina. Eu tenho tudo, você não tem nada. Eu tenho tudo, você não tem nada. Ela continuava. As pernas balançando no ar, vento no rosto, cabelo esvoaçando.

Essa é a primeira lembrança que me vem à cabeça quando penso na infância. É clara. Lembro das cores, dos sons, do rosto da garota com nitidez. Depois disso nunca mais a vi. Fiquei uma semana sem descer. Talvez ela tenha se mudado ou, não sei, bloqueei qualquer outra memória dela.

A adolescência foi estúpida, é claro. Fugindo das festinhas, com medo da meninas, escondendo as espinhas. O - tão sonhado - primeiro beijo valeu. Foi coisa de filme, sabe? Ela era loira, mais alta do que eu e bem charmosa. Olhava pra mim e ria. Aquele rosto escondia algum mistério. Eu, com quinze anos, nunca desvendaria o tal mistério. Fiquei inebriado.

Pegou meu rosto e perguntou:
- É teu primeiro beijo, guri?
- Não, senhora.

Respondi sem jeito. Menti. Tentei disfarçar o nervosismo. São cinquenta reais, ela disse. Valeu cada centavo.

Primeira vez? Não sei, não me lembro bem. Acho que foi mais cara do que o beijo. A moça também não era lá grandes coisas. Foi tudo tão rápido que nem percebi o que havia acontecido. Tive que repetir muitas e muitas vezes até entender realmente como a coisa funcionava.

Ultimamente eu ando assim meio perdido em lembranças. Tento saber onde foi que eu quebrei. Não é maneira de dizer, não. E também não tem nada a ver com dinheiro. Estou quebrado, não falido. É dentro. Não sei como explicar. Taí! Um exemplo. Sempre fui bom com as palavras e agora não sei dizer o que sinto. É uma mistura de medo com desânimo. 

Outro dia marquei um encontro pela internet. Agora vai, pensei. Encontros, ao meu ver, são momentos em que você se abre para o desconhecido. Quer contatar o outro ser que está ali vivenciando aquele momento com você. Acho que sou retrógrado, mas aquilo parecia uma entrevista de emprego. No fim, estava completamente exaurido. 

É difícil passar muito tempo sustentando aquilo que você não é. Respondendo perguntas, tentando acertar quando ainda nem aprendeu. Deixei a moça na porta de casa e ela me perguntou se não queria entrar para um café. Limitei-me a dizer que sofria de insônia, dei as costas e saí.

Talvez eu não esteja quebrado. Talvez o mundo tenha estragado. Eu estou apenas dolorido de tanto remar contra a maré. Vou me arrastando pelos dias sem pensar, sem sentir. E vejo a vida me engolindo até quase sufocar. Uma vida que não quero viver.

Vejo gente mentindo, se preocupando apenas com a aparência. Numa correria louca para ter qualquer coisa que se anuncie na TV. Vivendo em um mundo onde a posse é predominante e o ser foi esquecido há bastante tempo. Um mundo em que a primeira frase de uma criança é: Eu tenho tudo, você não tem nada.

2 comentários:

Hj disse...

Não tem palavras para expressar o que você, e ninguém mais tem.

Carolina Vianna disse...

Ahhh se fosse assim... rsrs ;)