quarta-feira, 1 de junho de 2011

Raimundo

Onde corre o sangue não se deita o corpo. Onde descansa a alma não se dá passagem. Lendo esse último trecho, fechou o livro e guardou a arma. Serviço feito, pagamento certo, podia dormir. Há tanto tempo matava por profissão que já nem se importava mais. Sou como os médicos, mas eles tentam devolver a vida, eu tento tirar. A semelhança é não sentir nada. A diferença é que eu não falho.

Dormiu debaixo da árvore, levantou cedo, apagou seus rastros. Pegou o dinheiro e preparou-se para correr mundo. Assim livre, tal qual colibri, vivia. Raimundo. Nome comum de homem comum. Raimundo para não gerar lembranças. Raimundo para servir, ele dizia. Dava até garantia, tamanha confiança que tinha em si mesmo.

Raimundo, na infância, fora menino tranquilo, desses que não dão preocupações. Nunca brigou na escola, não batia em ninguém. Fugia das discussões, elogiavam as professoras. Adolescência encurtada pelas dificuldades do sertão. Cortava cana, ajudava em casa, cuidava dos irmãos.

Não tinha pai. A mãe, cega, fazia quitandas pra vender na feira aos domingos. Ele a levava, não admitia que usasse bengala. Fraqueza, dizia à mãe. Ela se contentava com a companhia.

Nunca teve dificuldade com mulheres. Não era bonito, mas tinha papo e gostava de desafios. Depois de conseguir o que queria - fosse um beijo, um abraço, um contato íntimo - desaparecia.

Um dia, perto da fazenda de Seu Gibão, recebeu encomenda grande. Dar cabo de uma família inteira. Nem pestanejou, a grana valia a pena. A rixa era de sangue. Havia quem não desse conta seus próprios problemas, para isso ele estava lá, à disposição. Não tinha tormentos, não tinha vida.

Ao anoitecer, parou na venda, deixou pinga acertada. Voltava em três horas, não mais que isso. Seguiu a menina, pensou em começar por ela. Dois irmãos, o pai, a mãe e pronto, estaria tudo terminado. Encontrou a casa. Espreitou.

A menina lhe lembrava alguém, mas a memória falhava. Viu a mãe. A memória, então, voltou. Lembrou de seus quinze anos. Ela ajudara sua mãe na adolescência. Desaparecera sem deixar vestígios. Deve ter sido quando casou, eu nunca soube o que aconteceu. Raimundo chorou.

Pensou em desistir, mas já era tarde demais. Matou o pai. Levou a prova ao Seu Gibão. Recebeu o dinheiro. Ficou com a mulher e os filhos do outro. Voltou para a cidade da mãe. Foi trabalhar na feira vendendo quitandas.

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