segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Na saúde e na doença

Não falava há mais de três meses. Aliás, desde o acidente. Comia e dormia. Passava os dias em silêncio. Ela era persistente, mas até a persistência tem limite. Seis meses e nada mudara. Contratou uma equipe de médicos. Além de doutores, psicanalista, enfermeiro e fisioterapeuta.

Não, não era essa vida que havia imaginado. Astrogildo imóvel. Calado. Taciturno. Nem as noites de carteado empolgavam-no. Nada. Ela até aprendera a jogar. Ele não se mexia. Não empurrava a cadeira. Não saía do lugar. E o pior, o pior mesmo, não dizia uma palavra.

Aquele homem era apenas uma sobra do que fora no passado. Dora trabalhava pelos dois. Seu pai ajudava no que podia. Será que a doença o atacara de vez? Ela pensava. Ele está paralítico, mas os médico deram esperanças. Se ao menos ele se exercitasse. Se ele tentasse. Tudo era possível quando se tinha fé. E ela tinha. Pelos dois. Mas começava a demonstrar os primeiros sinais de cansaço.

Astrogildo parecia irredutível. Dora, por fim, pareceu afrouxar. Diminuiu os cuidados. Dispensou os médicos, enfermeiro, psicanalista. Manteve apenas o fisioterapeuta. Exigência de seu pai. Ajustou a agenda para que não se encontrassem. Basta de ter um hospital dentro de minha própria casa! Todos entenderam.

Enfim sós, diriam. Colocava-o na cadeira de manhã cedo e empurrava-o até a janela. A vizinha levava comida ao meio-dia. À tarde, dava banho, comida e levava-o de volta para a cama. Continuou a trabalhar. Sua única alegria. Os poucos momentos que passava fora de casa, sem a presença patogênica de Astrogildo.

Passado um tempo, começou a chegar cada vez mais tarde. Envolvia-se com o trabalho. A vizinha, agora, dava também o jantar a ele. Ela não voltava antes das dez. Vez por outra, esticava a noite. Não a recriminavam. Dora era vista como uma mulher santa. Sustentava a casa, cuidava do marido enfermo. O que mais podiam exigir?

Astrogildo não falava. Só existia uma versão da história.

- Caiu e bateu a cabeça.
- Como, Dorothéa?
- Saíamos de um clube. Repletos de felicidade. Havíamos marcado a data, sabe?
- E você nunca pensou em desistir?
- Que tipo de mulher eu seria se abandonasse o meu amado por uma enfermidade? Promessa é promessa!

E os vizinhos se ressentiam por ela. Perdoavam suas pequenas falhas. Suas traições. Suas omissões. Até ela começava a acreditar que era realmente uma santa.

Havia acostumado-se àquela rotina. Tarde da noite, como muitas outras vezes, abre a porta fazendo barulho. Ouve vozes. Ladrão! Pensa. Aos poucos, reconhece. Astrogildo! Ele voltou a falar. Corre para o quarto em êxtase. Sabia, eu sabia que ele poderia se recuperar!

- Astrogildo!!!

Ela berra espantada enquanto o fisioterapeuta veste-se às pressas. Astrogildo não olha em seu olhos, com a voz embargada, consegue apenas balbuciar.

- Eu... Eu tenho uma doença. Eu te disse...

3 comentários:

Unknown disse...

Almodôvar às avessas!!!!!!!!
Que safadinho o Astrogildo, hein?

Carolina Vianna disse...

Nelson Rodrigues ;)

Gladstone disse...

ótimo fim de folhetim...