terça-feira, 19 de julho de 2011

Crônicas de Pouco Amor

Escritas ao sabor de Guinness 
numa noite onde esquecer 
um grande amor não era um desejo 
mas uma necessidade


V

Só me dei conta quando já estava na beira do caixão. Ela parecia sorrir. E eu ali, débil, pensando nas meias que havia trocado ao me vestir de manhã. Uma preta e outra azul. Se ela ainda estivesse viva, não aconteceria. Separava minhas roupas todas as manhãs.

Tantos anos juntos. Éramos simbióticos. Dependíamos um do outro. Ela não ia até a esquina sem me avisar. Eu não sabia nem vestir minhas meias. Comprovado!

A rotina. O hábito. Repetição monótona das mesmas coisas, diz o pai dos burros.

Vestir as roupas que estavam sobre a cama. Descer para tomar café. Ler jornal. Beijo na face direita. Caminhada. Jogo de xadrez na praça. Restos de pão aos pombos. Retorno. Beijo na face esquerda. Almoço. Sesta. Jornal. Cama. Novo dia.

Quando eu trabalhava, reclamava da rotina. Ah, se eu soubesse!

Ela não reclamava de nada. Fazia sem cansar. Talvez até sem pensar. Resmungava pouco. Aliás, ela tinha um jeito de resmungar com os olhos. Irritante, mas eu gostava. Trinta anos não são trinta dias.

Não conversávamos há tanto tempo. Talvez por já sabermos, antecipadamente, o que o outro pensava. Ou por falta de assunto, vontade. Não sei. Agora, Inês é morta. Literalmente.

Mania de brasileiro. Faz piada com tudo. Mas também, quem mandou chamar-se Inês e morrer? Então, agora Inês é morta.

Pensei isso no velório. Contive o riso. Pega mal rir no velório da esposa. Eu acho. Bom, agora.. Inês... Tudo bem, já gastei. Não repito mais a piada.

Nos conhecemos na juventude. Eu fazia Mobral. Ela era professora. Sempre me tratou com carinho. Desde nova era assim. Nunca mais conheci alguém com tanta paciência.

Era seu primeiro emprego. Ela entrava na sala e o ar recendia a Leite de Rosas. E eu, eu era um pão. Burro, mas tinha boa pinta. História típica. Aulas particulares, namoro, noivado e casamento.

Ela sempre cuidou de mim. Mulher, mesmo quando não tem filhos, vira meio mãe da gente. Queria ter dito isso. Agradecer pelos anos de dedicação. O tempo às vezes é cruel. Ela se foi sem nenhum aviso. Nenhum sinal.

Pareceu abrir a boca tentando murmurar algo. Não conseguiu. Se soubesse que seria tão rápido teria diminuído a dose do veneno.

Um comentário:

Sca disse...

Muito boa, Carol!
Final surpreendente.