segunda-feira, 23 de maio de 2011

Coisas simples

Coisas simples, é por aí que devo começar. Cuidar de uma planta, depois de um bicho, depois de uma gente. Uma gente, assim, do meu tamanho. Se cumprir as tarefas simples com destreza, aí sim, pensar em reproduzir uma miniatura de gente.

- Por que tanta gente pula todas essas etapas, dá conta de tudo e eu não posso?
- Por causa do seu histórico.

Ele nunca dá as repostas que eu quero ouvir. Diz que deve me fazer pensar, que esse é o trabalho dele. Trabalho chato, isso é o que eu penso.

Coisas simples, ele disse. Então comprei a planta no primeiro dia. Um cacto. Cactus? Cactos? Não sei. Bom, achei que seria a planta mais simples para se cuidar. Dei nome, coloquei na janela pra pegar sol e até conversava com ele de vez em quando. Godofredo morreu em uma semana. Afogado, disse o rapaz da floricultura, e tratou logo de me vender uma violeta.

- Essa é resistente.
- Tá certo, obrigada.

Durou um mês. Pensei em dar nome, mas resolvi que seria melhor esperar uns três meses pra ver se iria vingar mesmo, sabe? Estou tentando evitar envolvimento emocional. Fiquei triste com o que aconteceu com Godofredo. Um cactos morrer afogado é, definitivamente, um assassinato de planta. Pois bem, tive o maior cuidado pra não afogar a violeta. Qual foi o resultado? Morreu seca!

Desde pequena, doutor, ela sempre foi oito ou oitenta, minha mãe diz. Até hoje não sei por que ela tem de vir às sessões comigo. Uma com ela, outra sem. Prefiro as que ela não vem, é claro! Ele diz que é importante o apoio familiar. Importante pra quem? Eu penso.

Quase nunca falo, me limito a dizer coisas cotidianas. Um dia eu disse que estava escrevendo. Ele se animou e pediu pra ver. Enrolei três sessões com isso. Conversávamos sobre o que eu poderia escrever, o tanto que iria me fazer bem e quando ele pedia pra ver, eu mudava de assunto. Disse que era muito tímida, ele acreditou.

No início da quarta sessão ele, praticamente, me obrigou a mostrar o bloquinho. Entreguei uma lista de feira. Ele ficou tão nervoso que terminou a sessão quinze minutos mais cedo. Achei que ele ia me colocar num cantinho pra pensar igual minha mãe fazia, e ri. Ele não viu.

Plantei alecrim, sálvia e manjericão. O manjericão completou seis meses de idade essa semana. Não vai ganhar nome, por mais que dure. Não quero apego, senão vou acabar me sentindo mal por comer partes dele todos os domingos. É, domingo é dia de macarronada na casa da minha mãe e eu, agora, sou a responsável pelos temperos. Quero dizer, pelo tempero, porque só o manjericão conseguiu sobreviver.

Minha mãe diz que é bom ter responsabilidades, diz que isso deixa a gente mais atenta. Não sei se me deixa mesmo mais atenta, mas lenta, isso com certeza. Duas vezes eu tive que voltar pra buscar o manjericão, de ônibus, no domingo. Imagina a hora que saiu o almoço! Era tarde até pra almoço de domingo.

Ninguém falou nada. Eles me olham como se sentissem pena de mim. Condescendente, eu disse. Nenhum comentário sobre o assunto, elogiaram "o emprego da palavra", pode? Eles pensam que sou retardada. Eu não falo nada.

Guardei dinheiro pra comprar um cachorro, mas acabei pegando um vira-latas que achei na rua. Não foi por causa do dinheiro, não. Eu não ligo pra essas coisas. É que ele tinha um olhar tão triste, tão perdido, tão inocente que pensei estar me vendo no espelho. Se eu tivesse um irmão gêmeo, com certeza, seria aquele cachorro.

Ah não, eu tive um irmão gêmeo.
Ele morreu.
Caiu no chão quando era pequeno.

Foi sem querer, eu disse.

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